22 março 2011

Cartas Extraordinárias e Outros Poemas - Martha Medeiros

Eu havia selecionado uma única página desse livro, sabe... e quando me dei conta já estava relendo tudo, de trás pra frente, e marcando meus favoritos.
Aaah.. não resisti e coloquei todos aqui! rsrs.
O post ficou longo, eu sei, mas vale a pena lê-lo!


2.

saudade eu tenho do que não nos coube
lamento apenas o desconhecimento
daquilo que não deu tempo de repartir
você não saboreou meu suor
eu não lhe provei as lágrimas
é no líquido que somos desvendados
no gosto das coisas o amor se reconhece
o meu pior e o seu melhor
ficaram sem ser apresentados


10.

por onde queres entrar: boca, ouvido, vagina?
então entre e fique bem dentro, muito além da periferia
inicie sua turnê pelo interior do meu corpo e descubra
que muito mais que um estômago, um fígado e dois rins
habita em mim uma cidade, um povaréu, outro planeta
experimente meu sangue, dê cá sua lingua, lamba
sinta do que é feita a minha umidade, e com muito tato
desdobre meus pensamentos, que é aquela coisa enroscada
ali no meio do cérebro, desmonte, sacuda, não tenha medo
se cair não quebra, são várias ideias robustas
brigam entre si mas se gostam, moram na mesma casa
e onde faz barulho é onde fica o coração, o musculoso e aflito
tem um som, reverbera, ora forte ora rançoso, chegue perto
e agora venha cá espiar com meus olhos, veja o que eu vejo
de que jeito enxergo o mundo de dentro pra fora, agora a alma
aproxime-se e toque, tirando o resto a alma é tudo o que sobra.


23.

crazy é uma palavra que confere certo humor à loucura
parece que se é uma louca divertida, supercrazy, personagem de gibi
alegre, magnética, cabelo colorido, uma destrambelhada
que ri

crazy é uma palavra que não descreve a minha inversão
sou louca em português, very absorta, nada institucional
desajuste silencioso, independente, que não se cura, nem
se cobre com bandeide

crazy não me entitulo, tenho a fachada são e não trago o
riso solto
meu desvio é genético, louca de berço, pura, sem aditivos
loucura genuína não se produz e a américa nada te a
ver com isso

crazy é bacana, crazyland, terra dos que estão em paz e
fumam,
a noite inteira gargalhando, beijando-se uns aos outros,
just fun
o que sinto é mais uterino, absolutamente pessoal e
profano

crazy, sou às vezes
louca, doze meses por ano


30.

te amei e amei minha fantasia
amei de novo e amei nossa estreia
amei meu próprio amor e amei a tua audácia
te amei muito e pouco e comovidamente
amei a história construída, os ritos e os porquês
te amei no invisível e no inaudível
amei no crível e no incrível
amei ser dona e te amei freguês
te amei e amei a farsa arquitetada
amei o nosso caso e amei a nossa casa
amei a mim, amei a ti, parti-me ao meio
te amei no profundo, no raso e com atraso
não era tua hora, não era minha vez


36.

sou de touro quando entro na arena
com a cabeça baixa e os olhos abertos
farejando quem quer me matar e me comer
sou de leão quando sacudo a cabeleira
dando a senha para que se aproximem
sintam meu cheiro de fêmea e menina
sou de câncer quando caio de cama
doente sem vacina e sem chance
deixando que ardam meus erros fatais
sou de gêmeos quando digo sim e não
quero e não quero e ambos
há várias rainhas no comando do reino
sou de sagitário quando enterneço e choro
miro a flecha rumo ao berço
quero voltar pra onde não existe problemas
sou de aquário quando rejeito comida
quando me falta ar embaixo do chuveiro
meus banhos são quentes demais
sou de libra quando ganho dinheiro
embolso meu estoque de bons atos
ninguém paga meu prato feito
sou de áries quando faço loucuras
e como as faço e como as convoco
porém quieta pra não alertar os invejosos
sou de virgem quando abro as pernas
ofereço o vermelho dos lábios
arremeço um grito e feneço
sou de escorpião quando me ferro
meto os pés pelas mãos e tudo lateja
onde mais dói é na cabeça
sou de peixe quando salgada
não há péle como a minha
não há carne mais tenra
sou de capricórnio quando me açoitam
batam mais e batam tudo
que eu nasci doze vezes foi para isso mesmo


38.

se até o dia vinte ele me ligar é porque vai rolar
se até quinta-feira não chover passa a ser provável
se até seis da tarde o comercial passar duas vezes
é sinal de que tudo vai acontecer como o planejado
mulher adora dar um prazo para o imponderável



46.

a mais carinhosa também é a mais bruta
a mais inteligente é ao mesmo tempo a mais sensível
a mais bonita também é a mais emburrada
a mais esperta é ao mesmo tempo a mais mundo-da-lua
a mais bem-humorada também é a mais chorona
a mais falante é ao mesmo tempo a mais secreta
a mais velha é ao mesmo tempo a mais moleca
a mais moça também é a mais madura

uma não vive sem a outra e eu não vivo sem as duas


50.

há momentos em que nossos valores se rompem
certezas se estilhaçam como cristal
viram pó nossas absurdas convicções
princípios só se justificam no final


60.

um iogurte deveria durar para sempre, digo,
deveria durar até que fosse ingerido, assim como um
patê,
um patê industrializado dura fechado até uns quatros
anos,
que para mim é uma eternidade e, portanto, ele é pra
sempre,
pois nossa vontade de comer um patê não resiste tanto,
então assim sou eu, a que rejeita prazos de validade,
prefere pessoas sensíveis que durem nos porta-retratos,
pessoas como você, que resistem enquanto fechados,
e são novos ao serem servidos, jamais homens perecíveis.


62.


eu,
modo de usar:

pode invadir ou chegar com delicadeza
mas não tão devagar que me faça dormir
não grite comigo que tenho o péssimo hábito de revidar
acordo pela manhã com ótimo humor
mas permita que eu escove os dentes primeiro
toque muito em mim, principalmente nos cabelos
e minta sobre a minha nocauteante beleza
tenha vida própria, me faça sentir saudades
conte umas coisas que me façam rir
mas não conte piadas
nem seja preconceituoso, não perca tempo
cultivando esse tipo de herança dos seus pais
viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim
para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude
eu saio em conta, você não gastará muito comigo
acredite nas verdades que digo e nas mentiras
elas serão raras e sempre por uma boa causa
respeite meu choro, me deixe sozinha
só volte quando eu chamar, e não me obedeça sempre
que eu também gosto de ser contrariada
(então fi que comigo quando eu chorar, combinado)
seja mais forte que eu e menos altruísta
não se vista tão bem, gosto de camisas pra fora da calça
gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço
reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto
boca, cabelo, os pelos no peito e um joelho esfolado
você tem que se esfolar às vezes, mesmo na sua idade
leia, escolha seus próprios livros, releia-os
odeie a vida doméstica e os agitos noturnos
seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate
que isso é coisa de gente triste
não seja escravo da televisão, nem xiíta contra
nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai
invente um papel pra você que ainda não tenha sido
preenchido
e o inverta às vezes, me enlouqueça uma vez por mês
mas me faça uma louca boa, uma louca que ache graça
e tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca
goste de música e de sexo, goste de um esporte não
muito banal
não invente de querer muitos filhos, me carregar pra missa
apresentar sua família, isso a gente vê depois, se calhar
deixe eu dirigir seu carro, aquele carro que você adora
quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras
mulheres
tenha amigos e digam muita bobagem juntos
não me conte seus segredos, me faça massagem nas costas
não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções,
me rapte
se nada disso funcionar
experimente me amar


69.

você é minha melhor amiga e minha pior
perdoa minha insensatez e se vinga
me perturba o sono e me faz carinho
me confunde: agora pode, agora não pode
ás e coringa, me perturba e me acalma
me veste de trapos e Dior
pró-pecados, contra virtudes
me mostra o caminho e o interrompe
me sacode e me faz sentar
você está do meu lado e não está
minha pior inimiga e minha melhor



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